Último Gás
2020 - 14 minutos
Dir. Mauricio Ramos Marques
A primeira coisa que se nota em “Exumação da Arte”, com o tom e objeto da narração, as imagens granuladas, sujas e desfocadas, é que aqui estamos falando do marginal e do subterrâneo, do “Underground” no sentido literal e figurativo. O documentário mistura imagens de diferentes texturas e se propõe a entrar um pouco na vida e mente do artista Cláudio Kambe, mas por meio de seus versos e de sua abordagem poético-reflexiva, acaba levando o espectador para uma espécie de manifesto, uma jornada de reflexões sobre o papel da arte e de seus criadores.
Uma performance em que várias pessoas desenterram obras de arte começa na tela e por meio dos quadros são retirados ossos, uma língua e um coração. O ato de exumar se refere literalmente a desenterrar um cadáver e figurativamente a tirar algo do esquecimento, com esse título e essa cena o filme está na verdade sugerindo que a arte morreu e foi esquecida, e que agora de forma ao mesmo tempo sacrílega e sagrada, é hora de fazer o movimento contrário. Stan Brakhage vem de um lugar muito parecido em seu texto “Metáforas da Visão”, quando diz que “os mercadores aí estão a se aproveitar de novo. Para as catacumbas, então. Ou melhor, plantemos a semente bem fundo, nos subterrâneos...” Os mercadores aqui são análogos a cultura do “Vernissage” contestada pelo filme que transforma a arte em negócio e a restringe à uma pequena elite financeira, e o caminho do artista seria o de crescer e se desenvolver pela terra para em algum momento vir a mudar essa realidade de baixo para cima.
As imagens de película têm um tratamento e edição que remete à Jonas Mekas, um dos pais do cinema de vanguarda americano, mais preocupado com o sensorial e o sublime do que com fazer sentido narrativo. Em meio à essa poesia audiovisual a locução nos informa que um dos papéis que têm como artista é o de denunciar a “Liga do Mickey”, como ele mesmo chama em suas obras as oligarquias de cada cidade e estado que detém o poder sobre o povo. Kambe, que afirma às vezes ser surrealista ao propor essa tarefa lembra a conferência de Buñuel na “Universidad de México” em 1958, em que cita Engels e diz que o romancista terá concluído seu papel quando tiver “abalado o otimismo do mundo burguês e obrigado o leitor a questionar a permanência da ordem vigente, mesmo que não nos indique diretamente uma solução, mesmo que não tome partido ostensivamente”.
As vozes afirmam que a pobreza e a depredação são bonitas porque são cruas e são a realidade, e que o artista precisa viver e sentir o cru para falar a verdade. Os devaneios e delírios continuam, a narração por vezes trava como um disco de vinil repetindo a mesma frase, e a imagem que por momentos têm suas velocidades e cores alteradas, colocam o espectador em uma espécie de hipnose sinestésica. No meio desse transe, uma musicista encapuzada surge tocando violino enquanto a performance e a escavação que mais parecem um ritual mágico atingem o seu fim. O artista, depois de finalizada a exumação, anda até o fim de uma rua e diz que “as flores dos meus inimigos são bonitas”, expressando sutilmente a ideia de que se a marginalidade é bonita por que é real, o contrário também se faz verdade, e o sucesso dos adversários também se faz digno de poesia, bucólica e boêmia, mas ainda assim poesia.
Texto por Pietra Miranda