Bicha Bomba
2019 - 8 minutos
Dir. Renan de Cillo
O que estamos fazendo com as imagens de arquivo? Reapropriar-se de imagens significa extirpá-las de sua origem e conduzi-las, com mãos estrangeiras, por caminhos a elas nunca traçados. Há, por suposto, certa beleza eufórica em realizar esse procedimento. Há deslumbramento com as possibilidades - quase - infinitas com o que se pode modelar com tal material bruto, e os últimos anos, talvez ainda mais agravados pela clausura inescapável da pandemia, vêm sendo preenchidos com filmes e mais filmes que fazem uso desse mesmo artifício. O complô passadista invadiu o digital, naufragou a 1080p, gerou tanta empatia que agora enfada. Como fazer sentido, portanto, amealhado a tantos pares? Bicha-Bomba nos dá, talvez, uma honesta resposta.
Somos apresentados a Alex, a criança das imagens do filme, pela sua morte - assassinado pelo pai por ser homossexual. Como se recuperasse sua voz a partir de um outro ser, que narra em primeira pessoa a relação abusiva com seu pai e sua família, a ternura das imagens de infância se contrastam com a enunciação de sua própria morte. Os ruídos do VHS agravam a fantasmagoria de Alex, que assombra, justamente pela ausência de intenção, o espectador.
São ao todo três vozes anônimas que costuram os fragmentos imagéticos da vida breve de Alex - uma voz internaliza o próprio Alex, outra lê o relatório policial de se assassinato e, a terceira, lê o Estatuto da Criança e do Adolescente. Intercaladas, as vozes, diferentes em seus timbres e enunciados, são próximas em seu registro - quase apáticas, não se afetam pela natureza brutal do que lêem. Alex brinca e sorri para a câmera, que o filma com a banalidade afável do registro caseiro e familiar, e são sobre essas imagens que recaem as vozes impessoais da narração. Elementos que se estranham e convivem sórdidos no mesmo filme.
Bicha-Bomba é um filme sobre alguém que não conseguiu ser. Um menino surrupiado de sua própria existência, física e metafórica. Bicha-Bomba é também sobre capturar o estado de violência e revira-lo para quem agride. A cartela inicial contém um texto de Jota Mombaça “Este filme não é capaz de vingar mortes, redimir os sofrimentos, virar o jogo e mudar o mundo. Não há salvação! Isso aqui é uma barricada! E não uma bíblia.” No ato de apropriar-se de imagens de um menino morto - assassinado - deseja-se não a sua heroicização, mas a permanência de sua infância. Desagrupadas, as imagens são recordações. Unidas, sob efeito crítico, elas são um recado.
Texto por Julia Noá