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Por Trás das Tintas


 

2020 - 15 minutos
Dir. Jhonatan Bào


     O poema declamado no começo do filme logo nos remete à “Vozes Desatadas”, importante documentário dos anos 80 dirigido por Marlon Riggs e que aborda questões raciais e LGBTQIA+ em uma mistura de linguagens, “Tenebrosas” não se acanha em expor essa referência. O tom da voz e os rostos em close da abertura já deixam claro que é um curta que deve ser ouvido com atenção, e no mesmo raciocínio de Linn da Quebrada quando canta: “Estou tentando entender, o que é que tem em mim que tanto incomoda você”, o discurso levanta a questão de como a sociedade vê os corpos trans e rapidamente explica seu título.

     A mistura de linguagens do filme se acentua e de forma quase didática, uma das vozes explica o local histórico da transgeneridade e como a visão generalizada dos corpos trans que existe hoje em dia foi imposta pela colonização. De fato, os registros datam desde a época suméria, em que padres “gala” eram representados sem gênero, e aqui na américa, “Muxes” da cultura zapoteca do México que eram lidos como um terceiro gênero ou “Dois-Espíritos” entre os Navajos nos Estados Unidos, em que existem dois gêneros dentro de um só corpo. A colonização impõe uma visão objetiva e binária do gênero, e como as outras vozes lembram, o processo trans é de constantemente se opor à essa singularidade e de se perceber maior e mais plural do que isso ao tomar controle do próprio corpo, para isso o espelho surge como um lugar de dúvida, um lugar de se observar, questionar a si e tudo o que até então se tinha como verdade. O espelho tem grande importância na psicologia, sendo abordado amplamente por Lacan na sua teoria do “Estágio do espelho”, em que a criança se entende por unidade a partir do momento em que começa a se identificar com o que ela é e não é ao se observar. Conseguimos entender então a importância do reflexo para a jornada dos corpos não-bináries e por que está presente em quase toda a imagética dos personagens trans no cinema representando esse lugar ambíguo.

     Porém como se entender e onde buscar referências de imagens e jornadas sendo que a mídia constantemente bombardeia estereótipos normalmente negativos dos processos trans? O filme ilustra com Vera Verão que por muito tempo a única forma dos corpos dissidentes se expressarem era através do humor. Nos últimos anos há uma alta de artistas LGBT surgindo na grande mídia e sendo tratados com seriedade para servir de inspiração, mas ainda assim, gafes como tratar travestis pelo pronome masculino em rede nacional mostram que isso é só o começo de uma mudança e ainda tem muito pela frente. Tenebrosas, constantemente lembra que a sociedade não define a transgeneridade, isso cabe a cada pessoa, e que cada estereótipo criado será abraçado e reapropriado. No fim cada jornada de autodescobrimento é pessoal, mas ao mesmo tempo em que as narrações desconectadas das imagens nos lembram isso, elas lembram também que todas as vozes são uma só, que a maior força é a pluralidade enquanto histórias e unidade enquanto resistência e comunidade. Como no final do documentário de Marlon Riggs, em que um uníssono de elocuções ecoa “De irmão para irmão”, aqui o efeito é o mesmo quando uma das vozes afirma “Somos multidões e sempre estivemos aqui”. 

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